quarta-feira, 30 de maio de 2012

Ao natural

Quando recebi o convite para o lançamento da coleção gastronômica do RS, fiquei nas nuvens e contando os dias. Todos os anos desde que abriu seu restaurante, a chef Roberta Sudbrack promove este evento. O convite vinha com um prato que parecia feito de bambu. E era indispensável que o levássemos no dia do jantar. Como num desfile de moda, no lançamento de um livro, na vernissage de um exposição, todos os convidados ficam ansiosos para entender a mensagem que o que o artista queria passar com aquele prato.

Logo que entrávamos na "casinha laranja", estava sendo projetado um vídeo que a Roberta fez, há alguns anos atrás, "Por uma memória que nos sustente". A exibição já fazia com que entrássemos no clima da nova coleção que leva o nome de "Ao Natural".

Quando subimos para parte de cima do restaurante, nos deparamos com uma mesa lindamente preparada para nos receber. As flores usadas foram hortênsias, em cores bem naturais, verdes e rosa velho. Os convidados já estavam delirando, mesmo com as luzes da cozinha ainda apagadas. Todos com lugares marcados, sentamos e aguardamos o inicio.

Começamos com uma canequinha de barro, que vinha com um bilhetinho: - Consommé de casca de abóbora assada. O gosto do consommé servido daquela mini moringa realçou o sabor da moranga/ abóbora, dando ainda um gosto terral. Muito bom voltar a sentir, depois de muitos anos, o lábio grudar no barro cru.


A flor de abobrinha, gema, raiz e...só foi o prato seguinte. Comi com as mãos mesmo e usei a flor de abobrinha como uma colher para a gema. Foi um estouro só na boca.


Depois foi a vez da castanha crua, cará, aviú e...só. Logo o primeiro da mesa que leu aviú, já começou a procurar o que era aquilo. A sempre antenada Luciana Fróes, que estava por perto e conhece bem o aviú, foi logo dizendo que se tratava de uma espécie de camarão minúsculo. Tudo resolvido, o garçom informa que é aconselhável usar as mãos. Mal sabia ele que já eu já estava fazendo isso desde o outro prato. O sabor é tão intrigante que tenho que provar novamente para tirar chegar a uma conclusão sobre o prato. Às vezes acabo de assistir um filme e fico com a mesma impressão.



Mas com a burrata, piracuí, ovas e ...só, foi só certezas. Amei e quero repetir sempre. Piracuí, segundo o dicionário de gastronomia de Luís da Câmara Cascudo, é farinha de peixe, que depois de seco é socado, reduzido a pó e colocado no fumeiro para apurar o gosto. Ficou incrível com as outras três texturas.


Eis que surge uma colher com o bilhetinho que dizia ostra vegetal: tomate, salsa e ...só. Por mais que pareça outra coisa e a gente fique a procurar outros ingredientes, de fato é só tomate e salsa. Mas a temperatura com que é servida essa ostra é o que faz a diferença, não esquecendo a textura do tomate. Parece tão deliciosamente simples que ficamos a nos perguntar porque não tivemos essa ideia antes. Elementar.


De quando em vez a chef colocava as caras no vidro da cozinha e olhava para o salão como se para checar o que as pessoas pensavam a respeito dos pratos. Bem sabia ele que estávamos todos em estado de êxtase com o desfile.

Quando chegou o palmito bebê, tomate, basílico e ...só, cheguei a me emocionar. É a coisa mais delicada que já vi nos últimos tempos. Mesmo assim, não tive a menor pena em traçá-lo. Voltei no tempo, quando eu ainda não conhecia o palmito pupunha, apenas aquele outro, meu velho conhecido, que tinha uma mordida diferente, mais durinho, menos tenro. Uma delícia de viagem.


Em seguida, foi a vez do cará, piracuí, galinha e ...só. O cará vinha dentro do ravióli, a galinha virou caldo e o piracuí voltou fazendo a vez do parmesão. Isso tudo misturado, para comer de colher. Ainda bem que não faltou o indispensável pão para raspar o prato.[


O desfile seguiu com um mergulho no mar: robalo, tomate, jambu e ...só. Fico muitas vezes com dúvida se devo ou não comer a pele do peixe, mas no caso desse robalo, estava tão convidativa que nem titubeei. Macio que só ele, com tomatinhos milimetricamente cortados. Mais uma vez o pão me ajudou a não deixar nem uma gota do caldo que estava divino.


Eu ainda estava tentando entender a sequência de pratos quando chegou a queixada, farinha ácida e só. Outra vez, fiquei de queixo caído. Não pensei em mais nada, queria comer aquela farinha de colheradas no café da manhã. E que carne macia! Foi o momento de maior silêncio que tivemos durante todo o jantar. Todos ficamos pasmos. Para quem não sabe, a queixada é uma espécie de porco selvagem, mas diferente do javali.


Ainda em êxtase, recebemos a primeira sobremesa: tâmara, chá preto, licuri e só. Mesmo não sendo muito fã de tâmara nem de licuri, amo chá preto então provei sem medo e não me arrependi, o chá preto derreteu todo gosto dos outros dois ingredientes e deixou tudo mais delicado, sentindo somente uma nuance de cada elemento do prato.


A segunda sobremesa chamava-se leite frito e ...só. Arrebatador! Tinha um gostinho de rabanada, não sei se pela canela ou pela textura e ainda tinha doce de leite. Um sonho.


Para terminar a noite, nos devolveram nossos pratos-convite junto com um lápis de carvão. A ideia era que expressássemos de alguma maneira o que havíamos sentido no jantar. Acho que aí a ficha caiu, realmente estávamos todos ali, testando e sendo testados. Uns desenharam, outros escreveram. Mas no final, todos brincamos de Escravos de Jó com os pratos.

Em seguida (e debaixo de entusiasmados aplausos) entrou toda a equipe da cozinha do RS na sala, com a chef por último. Quando tudo acabou, fiquei tão emocionada que me deu vontade de chorar. Assim como acontece quando assistimos a um concerto emocionante, ou um grande filme que comove. Mas ali não havia nem o escurinho do cinema nem o anonimato da plateia, por isso contive as lágrimas. Ademais, ainda era preciso parabenizar a chef. Mas quando ela veio falar comigo, eu ainda mal conseguia articular qualquer palavra. Mesmo assim, acho que ela entendeu perfeitamente o que eu queria dizer. Assim como eu acho que entendi tudo o que ela quis passar com a simplicidade genial da noite. Naturalmente. E só...


texto e fotos: Luciana Plaas