domingo, 31 de janeiro de 2010

O menino Glicério

por Alexandre Lalas


Glicério nem um ano tinha quando a mãe deixou Fortaleza e os filhos para trás em busca de chances melhores na vida. O avô materno era quem cuidava das crianças na capital cearense. Ou, talvez, fossem as crianças que ajudassem a cuidar do avô, doente desde que levara uma chifrada no abdome. Quando o avô faleceu, o pai biológico cuidou de Glicério. Por um tempo. Um belo dia levou o menino para passar o fim de semana na casa da avó. Nunca mais voltou.

Menos mal que a avó morava em uma bela casa na roça, em um vilarejo que nem no mapa estava. Em toda a vila, televisão só havia uma. Que funcionava a bateria. Luz elétrica e água encanada, nem pensar. A cidade mais perto era Antônio Diogo, que ficava a cerca de 70 km de Fortaleza. Glicério tinha quatro anos. Para uma criança naquela idade, o lugar era perfeito. A rotina era escola, chupar uma manga na sombra da mangueira, banho de açude, passeio a cavalo. Uma infância feliz.

Até que a mãe, a esta altura morando no Rio de Janeiro, bem empregada como costureira em uma boutique e casada novamente, achou que já era hora de buscar Glicério. E então veio o menino, acostumado à imensidão do campo, morar em uma quitinete na Lapa, com a mãe, as duas irmãs, e o novo pai.

A adaptação não foi nada fácil. Os costumes eram diferentes. O garoto acostumado a feijão de corda, baião de dois e carne de sol, teve que começar a comer salada. As brincadeiras infantis na escola também eram estranhas a Glicério. Mas o garoto logo se enturmou e tornou-se popular.

Quando a família se mudou para Botafogo, para um apartamento melhor, Glicério entendeu que já era hora de trabalhar. E aos 12 anos, começou a lavar carros em um estacionamento no Catete, onde o tio trabalhava. Depois, virou jardineiro em uma vila pertinho do Museu da República. Além de estudar e trabalhar, ainda arranjava tempo para treinar no Aterro do Flamengo, entre os dentes de leite do clube da Gávea.

A experiência no futebol não deu muito certo. Nem a jardinagem. Quando perdeu o emprego de jardineiro, Glicério foi indicado por um amigo para trabalhar como assistente de garçom no Bar do Tio Otávio, em Botafogo, pertinho de onde morava. Glicério tinha 16 anos. E a vida começava a tomar um novo rumo. De auxiliar, virou garçom. Depois, subgerente. Mudou de restaurante para ganhar melhor. Até que foi parar no Valdostano, especializado em comida italiana. Nas folgas, tomava cerveja com os amigos. Quando saía com alguma garota especial, pedia vinho. Liebfraumilch, branco alemão meio-doce, bem popular na época, era a escolha.

No Valdostano, conheceu Valmir Pereira. Valmir incentivou Glicério a fazer um curso na Associação Brasileira de Sommeliers. O mercado de vinhos começava a despontar, e ainda havia muito poucos profissionais gabaritados trabalhando em restaurantes. Glicério foi. Fez cursos e concursos. Formou-se e foi trabalhar com Danio Braga, na recém-aberta Loccanda della Mimosa. Ficou lá por 12 anos. E aquele garoto, criado solto na roça, virou Glicério Marcos Lima, um dos mais importantes sommeliers do país. Hoje, além de professor da ABS, presta consultoria à rede de supermercados Esal, de Angra dos Reis. E é titular absoluto do time de degustadores da Confraria dos Nove.

Na semana passada, tive a honra de ser convidado para participar da mesa avaliadora da prova de Homologação de Sommelier Profissional da ABS. Dos 14 inscritos, apenas cinco chegaram à prova final. Destes, somente dois conseguiram a certificação e receberam o pin. Emocionados, Ramón Justo, do Garcia & Rodrigues; e Rodrigo Moura, do Salitre, mal cabiam nos elegantes ternos que usavam. Emocionado com a felicidade de ambos estava também um dos jurados: Marcos Lima, o menino Glicério, que via na vibração dos dois aprovados, um pouco da própria história.

E aos que não conseguiram a homologação, vale o exemplo de Marcos. Na primeira prova que fez, sequer passou no exame escrito. Chorou, estudou, se dedicou. Três anos depois, Glicério Marcos Lima ganhava o concurso de melhor sommelier do Rio.

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