sexta-feira, 29 de junho de 2012

Ícones brancos de guarda




por Alexandre Lalas

O senso comum recomenda o consumo rápido dos vinhos brancos. E, de fato, na maioria dos casos, o tempo em garrafa não faz nem um pouco bem a este tipo de bebida. Só que, como quase tudo na vida, há exceções que confirmam a regra. E no caso dos vinhos brancos, segundo a MW inglesa Jancis Robinson, cerca de 5% dos rótulos ficam ainda melhores depois de cerca de cinco anos após a colheita. E quando o assunto é guarda longa a coisa fica ainda mais restrita. “Acredito que não chegue a 1% o total de brancos que possuam características para envelhecerem bem por mais de uma década”, assinala Jancis.

Mas, embora raros, estes vinhos existem. Que o diga o colecionador francês Christian Vanneque, que em julho do ano passado pagou a bagatela de R$ 180 mil por uma garrafa de Château d’ Yquem 1811. Ex-sommelier do restaurante parisiense La Tour d’Argent e um dos e um dos degustadores do famoso Julgamento de Paris, em 1976, quando um punhado de vinhos californianos até então desconhecidos bateu, em prova às cegas, os grandes châteaus franceses, mudando a história da indústria vitivinícola, Vanneque chamou a compra de “uma pequena loucura” e pretende abrir a garrafa em 2017, quando completará 50 anos de carreira. Quando enfim provar o Yquem 1811, o francês poderá comprovar as palavras do crítico norte-americano Robert Parker, que degustou o vinho em 1996, dando-lhe os máximos 100 pontos e comparando a bebida a “um creme brûlée”.

Grandes vinhos brancos de sobremesa têm, de fato, uma capacidade de guarda maior. Não apenas o Yquem ou alguns vizinhos de Sauternes, mas grandes tokajis, massandras, eisweins e trockenbeerenausleses costumam envelhecer bem. A razão é a combinação entre a acidez e o açúcar residual presentes nestes vinhos, o que proporciona uma espécie de escudo contra os efeitos do tempo.

Mas não apenas os brancos doces são capazes de encararem um longo tempo na adega. Vinhos secos como alguns grandes borgonhas, rieslings do primeiro time, chenins, semillons, alguns hermitages e uns espanhóis e italianos, entre poucos outros, também entram com louvor nesta lista. Nestes casos, em que a quantidade de açúcar residual nos vinhos é baixa, a chave para a longevidade é a acidez.

“O grande ponto é a quantidade de acidez. Ela agrega frescor e mantém o vinho vivo durante a passagem do tempo. A acidez é parte determinante da estrutura do vinho e é um fator decisivo na hora de determinar se um branco tem ou não capacidade de envelhecimento”, diz Benjamin Joliveau, da Domaine Huet, uma vinícola do vale do Loire que faz brancos secos e doces com longo potencial de guarda.

Mas, como bem destaca Joliveau, há outros fatores que, combinados com a acidez, influenciam na longevidade de um branco seco. “A concentração do vinho é outro fator determinante, assim como o corpo. Também depende do tipo de uva. Castas como riesling e chenin têm, de maneira geral, mais capacidade de produzir vinhos longevos do que a chardonnay e a sauvignon”, explica. “Não podemos esquecer-nos da viticultura. Solos, clones, rendimentos... Tudo isso influencia na concentração do vinho e influi diretamente na capacidade de guarda”, prossegue.

O trabalho na adega é outro ponto importante a ser considerado. “A vinificação também tem um peso importante. Fazer a fermentação malolática faz com que a acidez do vinho baixe. Aqui no Huet, nunca usamos esta prática justamente por buscar um maior frescor. Manter esta acidez é importante para que o vinho possa envelhecer bem. Por fim, o tempo em barricas também influencia na oxigenação e oxidação de um vinho, influindo em sua capacidade de guarda”, completou Joliveau.

Um dos expoentes da viticultura biodinâmica e produtor cuja capacidade de guarda dos brancos que faz é incontestável, o francês Nicolas Joly traz outros pontos interessantes ao debate. “O potencial de guarda de um vinho é baseado no tipo de vida que a uva levou e do que foi feito na adega”, ensina. “Práticas modernas encurtam enormemente o tempo de vida das uvas. A razão é simples: o uso do inseticida reduz a ação das raízes que buscam alimentação em micro organismos no solo. Os inseticidas matam estes micros organismos. Daí, a raiz volta à superfície para buscar a alimentação em fertilizantes químicos. Este sistema polui a seiva e afeta diretamente a fotossíntese”, explica Joly.

“Portanto, estas práticas já reduzem o potencial de vida da uva e ainda prejudica o gosto. Na adega, o excesso de tecnologia que é usado na produção do vinho, como o uso de enzimas, gorduras, leveduras selecionadas e outras coisas que não são naturais da vinha, reduzem ainda mais a capacidade de vida do vinho”, afirma.

“A biodinâmica é apenas um catalisador das forças as quais a planta precisa para ser saudável. E por conta disso, quase não precisamos fazer nada na adega. É claro que precisamos olhar o pH dos vinhos, mas o básico é o que já falamos”, comenta Joly. O francês conclui fazendo uma comparação. “Nos vinhos verdadeiramente biodinâmicos (há muitos que são mais marketing do que de fato biodinâmicos), muitas vezes necessitamos da agressão da oxidação para que o vinho mostre todo o potencial que tem. Estes vinhos costumam ficar ainda melhores dois dias depois que a garrafa é aberta. Em contraponto, vinhos produzidos através da agricultura moderna precisam justamente de forte proteção contra a oxidação, pois sozinhos não têm forças para lutar contra ela”, finaliza.

O produtor friulano Josko Gravner tem ponto de vista semelhante ao de Nicolas Joly. Radical até a última gota, aboliu o uso de barricas novas nos vinhos que faz. Hoje em dia, executa um trabalho cuidadoso na vinha, coloca tudo em uma grande ânfora de terracota, sem adição de leveduras selecionadas nem tampouco controle de temperatura. Veda, e deixa lá por sete meses. Depois, afina em grandes cascos neutros de madeira e o vinho é engarrafado sem clarificação e nem filtração, na lua crescente. Sete anos depois para os vinhos comuns e dez para os reservas, Gravner entrega ao mercado rótulos únicos, raros e com enorme potencial de guarda.

“Quando o vinho nasceu, ele era branco. Os tintos ainda sequer pensavam em existir”, provoca. “As uvas brancas, ao contrário das tintas, podem se beneficiar de um longo contato com a casca, que é onde moram os nutrientes capazes de dar longevidade ao vinho”, resume Gravner. “E tanto a natureza sabe das coisas, que a podridão nobre ataca apenas as uvas brancas”, conclui o italiano de sangue esloveno que desdenhando das tendências, resguarda-se das voltas que o mundo dá se apegando às mais antigas tradições. E encontra nas experiências do passado o caminho do futuro, fazendo os vinhos como faziam os romanos.

Apego à tradição e ojeriza às tendências de mercado são pontos em comum entre Gravner e o espanhol Julio Cesar Lópes de Heredia, bisneto de Don Rafael Lópes de Heredia, o fundador da Viña Tondonia, vinícola de Rioja, mundialmente famosa pelos brancos espetaculares que produz. E que tem a particularidade de chegarem ao mercado muitas vezes mais de uma década depois que as uvas para a produção daquele rótulo foram colhidas.

“Acredito no mínimo possível de interferência, tanto na vinha quanto na bodega. Os vinhos se fazem por si só”, diz Julio. Embora o estilo da Tondonia – de brancos ricos em estrutura e com um toque de oxidação – seja cada vez mais raro em um mundo ávido por vinhos fáceis, o produtor não dá a mínima para as tendências e modas do mercado. “Nossos vinhos são sim diferentes, mas traduzem com exatidão o que é a Rioja. Há muitos produtores que dançam de acordo com a música, ficam indo de lá pra cá e a cada cinco anos, e quando muda o gosto do consumidor, muda o vinho deles, não há identidade”, critica. Embora não possam ser tachados de vinhos comerciais, o fato é que o vinho feito na bodega de Julio vende e bem. Prova inconteste de que não apenas há vinhos brancos que podem envelhecer bem, mas também há um time de consumidores cujas portas das adegas estão escancaradas para estas verdadeiras preciosidades.

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